03/03/2010

Relato de parto domiciliar – Serena 09/02/2008



Minha Serena poesia


Foi o instante harmônico, onde cada nota soava e cada cor vibrava na ressonância perfeita. Minha filha nasceu! Uma poesia, uma linda flor em nossa casa! O amor a única certeza!
Já estava pressentindo a chegada da Serena já há algum tempo, mesmo que ainda houvesse bastante prazo para a data “pouco provável”. Sentia medo e estava insegura com todas as mudanças que viriam a acontecer. Fui buscar o Mario no consultório do nosso médico acunpunturista. O médico aproveitou para me colocar uma agulha bem no meio da cabeça, para que, segundo ele, “eu aceitasse o que viesse a acontecer”. Trabalhei muito essa questão durante a gestação: “lache-prise”, aceitar as coisas como elas são.
Senti que ela estava chegando. Nesse mesmo dia, fui levar o Mario até um castelo, cerca de uma hora de Paris, onde ele daria um curso durante dois dias. Já era tarde da noite e chovia, fiquei insegura de voltar por aquela estrada sozinha com o Rudà, e acabamos passando a noite com o Mario nesse lugar lindo e estranho. Não consegui dormir, pois ficava imaginando o que faria se o bebê decidisse chegar. Não gostaria que ela nascesse naquele ambiente formal. Acordamos cedo, e como estava chovendo, não havia muito o que fazer ali. Achei melhor voltar logo pra casa, pois precisava descansar.
Foi difícil chegar em nosso bairro, pois havia greve de taxistas e todas as entradas da cidade estavam bloqueadas. Passei mais de duas horas dentro do carro, e não via a hora de me deitar.
Quando por fim cheguei em casa, uma surpresa nada agradável. Na véspera, havia deixado a minha chave de casa com a amiga da minha irmã, que passava alguns dias com a gente. o combinado era que se ela saísse, deixasse antes a chave. Não foi isso que aconteceu, e por prudência ela resolveu levar a chave consigo. Fiquei perplexa! Não tinha como encontrá-la e a outra chave estava a quilômetros dali.
Respirei fundo, liguei para uma amiga que morava perto, ela não atendeu. Indignada, fui com o Ruda até um parque fechado para que ele se distraísse e eu pudesse repousar um pouco. Sentia uma forte ardência na região do púbis e um peso muito grande na parte baixa do ventre. Percebi que minha filha tinha encaixado. Aproveitei a chance de estar fora de casa, para comprar uma bola suíça e uma barra de musculação, objetos que poderiam me auxiliar durante o trabalho de parto.
Aproveitei também para comprar algumas coisas pra casa. Eu e o Ruda estávamos exaustos, já eram 16 horas, decidi voltar pra casa para ver se a amiga já tinha voltado. O Rudà adormeceu no carro e eu estava cada vez mais aflita. Ela não estava lá. Resolvi esperar e a aflição aumentava. Permaneci no carro até as 19h, quando consegui falar com uma amiga que morava perto dali. Decidi ir para a sua casa, pois sabia que quando o Rudà acordasse ia estar com fome.
Já era incomodo para eu me movimentar. Na casa de minha amiga, dei janta para o Ruda, banho e já me preparava para dormir, quando a Fernanda me ligou. Ufa! Fiquei super aliviada, o que eu mais queria era ir para minha casa. O caminho parecia longo... Cheguei finalmente às 22h30min. Tomei banho e fui dormir feliz de nada ter acontecido de poder ainda curtir meu bebê em meu ventre.
No dia seguinte era preciso ir buscar o Mario. O castelo em que ele estava era perto de Chartres, uma cidade conhecida por sua linda catedral. Decidimos ir até la para fazer um lanche e rever a catedral.
No interior sagrado daquele velho lugar, eu e o Rudà acendemos uma vela a Nossa Senhora do Pilar, fiz uma linda oração. Tomamos um delicioso café e pegamos o caminho de volta para o nosso lar. Estava aliviada e agradecida por nada ter acontecido nesses últimos conturbados dois dias.
Na manhã seguinte fui à Paris resolver algumas coisas. Deixei o Ruda na escolinha e fui para minhas ocupações. Almocei com a Olivia e tudo parecia normal. No final do dia, pelas 16h, fui até o atelier na Bastilha receber uma mãe para orientá-la o uso do babysling. Aproveitei para escolher uma echarpe pra Serena e também pegar as fraldas biodegradáveis. Estava aflita, pois já havia passado da hora de buscar o Ruda. Fui andando rápido e sentia meu útero contraindo, achei que era o cansaço e porque estava com vontade de fazer xixi.
Quando apanhei o Ruda, me tranqüilizei e consegui relaxar um pouco o ventre, mas no trajeto para casa comecei a perceber que as contrações tinham menos de 5 minutos de intervalo e estavam mais intensas que normalmente. Antes de chegar em casa, passamos na estação para pegar o Mario. Momento raro nos últimos tempos, tê-lo conosco a essa hora.
Chegamos a casa juntos e quando desci do carro senti a tensão na parte baixa do ventre. Mesmo assim achei que fosse apenas cansaço.
Continuei fazendo o que tinha programado: tirei lixo, dobrei as roupas, fiz janta para o Ruda, falei com a Paty no telefone... Percebi que as dores estavam mais intensas. Resolvi então preparar a máquina fotográfica, separar lençóis limpos...
O Mario não acreditava muito, mesmo assim ligou para a Françoise, nossa parteira. Ela tinha acabado de chegar de um parto e precisava esterilizar seus instrumentos, levaria para isso 1 hora. Combinamos que ela me ligaria quando estivesse pronto para saber se já deveria vir.
O Ruda e o Mario estavam brincando e para mim já estava difícil suportar as dores intensas. Pedi que nos concentrássemos, para isso fizemos um lindo ritual, defumamos a casa, ascendemos nossas velas, cantamos, cantamos muito. Foi um momento muito mágico, com muita harmonia entre nós.
Explicamos ao Rudà o que estava acontecendo, e pedi que o Mario colocasse-o na cama, pois sentia que o trabalho de parto se intensificava. Percebi que o Mario se preparava para uma maratona de 16 horas, como tinha sido nossa experiência com o Ruda. Era difícil até para mim imaginar diferente, mas assim mesmo insisti que precisava me concentrar.
Ele foi acompanhar o Ruda, e eu desci e comecei a fazer exercício na bola, rebolava apoiada nela, as dores estavam muito fortes e era difícil ficar em pé. Pedi hesitante que a Françoise viesse. Não conseguia acreditar que minha filha estava chegando. Não me sentia preparada, sentia medo de não conseguir amá-la como amo seu irmão.
O Ruda quis que eu ficasse um pouco com ele antes que adormecesse. Tive três dolorosas contrações deitada em sua cama apertada, a única forma de atravessá-las era respirando profundamente e expirando a dor para que ela me deixasse.
Ele dormiu, desci para entrar na banheira. O Mario andava pra la e pra ca sem ainda acreditar que nossa filha não ia demorar em estar conosco. Minha mãe ligou. Gostaria que ela estivesse conosco, pois precisava que alguém acompanhasse o Rudà nessa mudança. Mas ela estava a mais de 12h dali, do outro lado do Atlântico.
Na banheira consegui relaxar e vocalizar a dor, me sentia uma grande baleia. Aquele som me ajudava muito. Foi difícil me permitir deixar sair o primeiro som, me sentia estranha em fazer aquilo, mas depois de passada a inibição, foi esse som que me acompanhou numa viagem distante, onde palavras não querem dizer nada.
A Françoise chegou. Tudo ia bem, ela verificou os batimentos do coração da Serena, ela estava bem 140 batimentos por minuto.
Senti que ela tinha descido bastante então decidi subir para o quarto com a minha bola. Subi as escadas engatinhando, não conseguia mais ficar em pé. E meus olhos já não viam mais nada, estavam completamente voltados para meu interior. Meu corpo me levava adiante nesse caminho místico que eu jamais conhecera antes. Nesse lugar não existe preocupação, nem caos, tudo é certamente como tem que ser.
Quando sentia uma contração me apoiava na bola para rebolar. A cada espiral que completava sentia meu corpo se abrir ainda mais. Sentia cada parte se abrindo e a Serena cada vez mais perto, e eu indo sempre mais alto.
Rebolei bastante. Sentia muito medo!
Quis mudar de posição, e me aproximei do Mario que ainda estava incrédulo da intensidade do trabalho. Sobre quatro apoios continuava rebolando e permitindo que meu corpo se abrisse, dessa vez sem medo que se rasgasse. Meu medo era na verdade uma culpa de não ter aproveitado a gravidez como gostaria, de não ter conversado o suficiente com a minha barriga, de não ter aproveitado cada movimento do meu bebê em meu interior. Tinha medo que essa culpa segurasse minha filha, que atrapalhasse seu caminho.
Tentava conversar com esse medo e não deixava ele me possuir, tentava fazê-lo ir embora com cada contração.
Percebia a cabeça da Serena bem baixa, parecia que havia apenas uma pele segurando-a. Na contração seguinte a bolsa estourou e senti uma vontade enorme de fazer força. Mais uma contração, senti sua cabeça passar, e na seguinte ela estava lá!
Que maravilha, a Serena nasceu como seu nome. Linda, miúda e firme. Peguei minha filha com coragem e nos tocamos pela primeira vez. Foi mágico!
Fui andando para a cama para poder investigá-la e descansar. Passando pelo seio ela já aproveitou e deu a primeira mamada, ainda com o cordão nos ligando, senti a placenta escorregar.
Ficamos assim grudadas até amanhecer na nossa casa, e eu não consigo achar palavras para descrever meus intensos sentimentos de graça. Foi a experiência mais mística que tive em minha vida!  Demorei muito tempo para voltar à realidade. O que vivi no nascimento de minha filha foi algo que até hoje me emociona e me confunde a mente, e espero que minhas palavras não sejam injustas com a grandeza que foi colocá-la no mundo.
Serena nos transformou em uma família.
Ela nasceu dia 09 de fevereiro de 2008 às 0:45h da manha no numero 30 da rua Léon Blum, Choisy le Roi (banlieu de Paris).

Luciana Lima

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